30 maio 2006

Poeta de rua

O poeta da minha rua chamava-se Elias, vestia de linho preto tingido na Ponte do Rato e balouçava ao vento o cachimbo por entre as apostas jogadas nas arcadas do Pelourinho. Tempos idos de riqueza gasta em mulheres fáceis e em jogo no clube de empresários. A pose manteve-se até ao dia em que também os operários começaram a subir ao Pelourinho, todos os sábados, para as compras na Praça, usando as suas viaturas compradas por empréstimo. Aí o verniz estalou, o proletariado ultrapassou o mestre, pois apesar de não calçar um sapato de verniz, nem tão pouco vestir um fato de linho acabado de passar, já galgava os paralelos, em veículos elegantemente calçados. A diferença entre o ser e o parecer tornou-se ténue e apagou da memória a figura ilustre do poeta Elias que, em silêncio, continua a cantarolar as árias dos tempos idos sobre as memórias inapagáveis da burguesia falida da cidade lã.

29 maio 2006

Putos...

Os putos que vi correr… com roupas simples… alguns, apenas com calções… com a cor gasta pelo tempo… contrastando com a pele escura dos corpos… outros… descalços… com os pés sujos… pisando a terra… com as suas brincadeiras… apagando as marcas… das rodas… da velha… e barulhenta camioneta… que circula ocasionalmente… naquele trajecto… buzinando insistentemente… para que se afastem… daquele caminho… que também é deles… Eles correm… sem ordem… mas com destino… são putos… são crianças… correm e acreditam… reencontro essa crença… na expressão… no olhar… no sorriso… que carregam… com o peso da espontaneidade… durante mais uma corrida… Eles querem alcançar aquela camioneta… hoje… amanha... um dia qualquer… um dia que chegará… É a velha camioneta… que transporta os sonhos… que lhes devolve a crença… que as distancias… são curtas… e que os sonhos… mesmo os melhores… podem tornar-se realidade… Foram estes os putos que vi correr… com roupas simples… alguns, apenas com calções… com a cor gasta pelo tempo… contrastando com a pele escura dos corpos… outros… descalços… com os pés sujos… pisando a terra… com as suas brincadeiras…

25 maio 2006

Umbigo da vizinha

O egocentrismo de algumas crianças, grandes e pequenas, tem dado lugar, progressivamente, a um confortável glamour alimentado pela admiração do umbigo da vizinha. A criatura vizinha é sempre pior do que eu e tem todos os defeitos, inclusive, os próprios e os da vizinha. Tudo isto encerra um desejo edificado de ser mais apetecível do que a vizinha. Todavia, sobra coragem e falta imaginação, para ir além do umbigo e encarar a vizinha, não como um auto-retrato directo, dado o altruísmo e o ângulo de visão requerido por este medonho exercício, mas sim como uma simples criança inacabada. É tempo de jogar a macaca e com isto perfazer um exercício íntimo de auto-conhecimento para depois, só depois, estender as duas mãos e escalar, com firmeza, o umbigo da vizinha que tanto nos admira.

23 maio 2006

Tempo...


Obedeceste ao tempo… um tempo… que corre… não pára… não espera… Envelheceste… aceitaste cada forma… cada traço… desenhado num corpo… que não reconheces… mas que transportas… denunciando a passagem… denunciando o próprio tempo… as historias… as mágoas… e as alegrias… os fracassos… e os sucessos… toda a experiência... ainda activa… com a pouca força que te resta… Serenamente acomodado… na cadeira que baloiça… que te oferece movimento… suportada pelo chão que pisas… hoje… com passos mais curtos… mais pausados… do que aqueles… que relatas… nas tuas historias… nos teus contos… já com a voz cansada… com um olhar profundo… sobre a planície… agora contemplada… com tempo… o tempo que faltou no passado… o tempo… que parece sobrar no presente… uma lembrança do próprio tempo… um tempo… que corre… não pára… não espera… envelhece…

19 maio 2006

Sandwich da vida

A vida quotidiana assenta em várias camadas. A inexperiência, a falta de confiança, o primeiro amigo, o primeiro namoro, os primeiros pontapés, enfim as primeiras camadas. Depois recriamos a natureza fácil das sandes rápidas, mais conhecidas por sandwiches, com vários molhos e combinações de novas sensações experimentadas na doçura e na agrura dos momentos efémeros vividos a dois. Mas as sandwiches da vida não são fruto de receitas acabadas, pois carecem de muita experimentação e de refinamento das camadas e dos seus verdadeiros ingredientes, a saber: amor (qb), crer (qb), confiança (na medida certa) e maturidade… muita maturidade, que é o que nos falta, até ao tal dia, em que iniciaremos outra viagem a bordo de uma nuvem perdida em busca da incerta e gostosa sandwich da vida.

17 maio 2006

Reinventar Historias...

Reinvento historias… pedaços de mim… como se quisesse… e pudesse… remodelar o passado… recordo tempos… recordo momentos… passados… contigo… com tanta gente… nalguns, apenas Eu… noutros… sem ninguém… exclusivamente sob o abrigo da lua… e de uma sombra… que acredito… ou desejo… ser minha… reflectida no chão que piso… mas que não encaro… numa noite… que me acompanha… mas não me protege… acompanhado também pelos medos… de quem se entrega… à beleza de um luar… vagueio… junto a uma estrada deserta… assistindo à passagem esporádica… dos carros… com destino… o destino que me falta neste instante… são passagens súbitas… como tantas outras… na vida… nas nossas vidas… A luz da casa por onde passo… desliga-se… chama-me à atenção… já é tarde… olho para a minha janela… a lua cede o espaço… o mesmo que a minha imaginação… cede ao cansaço… fecho os olhos… com a certeza que amanha retomarei a noite deserta… recomeço… a reinvenção das minhas historias…

15 maio 2006

Branco e Preto

Há animais que conseguem, felizmente, visionar o mundo a duas cores, ou seja, a branco e a preto. São duas tonalidades, o branco e o preto, que se podem combinar e gerar amigos. Mas separadas por idades, religiões, valores e credos, sendo fiéis aos valores da amizade e da fraternidade. Aos olhos de alguns seres, o que torna incompreensível a relação de amizade é a diferença de idades e, sobretudo, os ambientes sociais coloridos que dizem respeito ao branco e preto. Espirram para dentro, que mundo trocado em que vivemos, o branco veio de baixo, rangeu os dentes e empurrou para cima. De dentro para fora, vindo do seu interior mais íntimo, marcado pela infância feliz de ser filho de operários. O preto teve uma educação acompanhada por pais criteriosos, interessados e acima de tudo humanos. Aliás característica que não abunda nos dias que correm. Enfim eis que o branco e preto decidiram fundir-se numa amizade indestrutível, apesar das diferenças e da reprovação social que não compreende que para dois seres humanos serem, verdadeiramente, amigos, basta aprender… todos os dias… a escutar o outro, mesmo que esteja bem longe dos nossos olhos e, independentemente, das idades e das tonalidades combinadas.

14 maio 2006

Passos Perdidos...


Como tantas pessoas… que se encontram… e desencontram… escolhemos caminhos diferentes… optei pela serenidade das serras… pelo verde dos campos… a minha fronteira… para o encontro com a paz… e a realização dos sonhos que esboço… tu… na firme posse da racionalidade… do método… aplicado a qualquer banalidade… preferes a confusão da cidade… a turbulência das praias… nos dias de verão… a agitação dos passos perdidos… das pessoas que encontras… reencontras… e perdes… nas ruas e nas avenidas… caminhando de um lado, para o outro… ou simplesmente… movimentando-se… numa tentativa… entre tantas outras… para abandonar… a alma asfixiada… presa a um corpo insignificante… mas… para ti… importante. Como tantas pessoas… que se encontram… e desencontram… escolhemos caminhos diferentes… cruzámo-nos… e num invulgar momento… de alivio da alma… descobrimos em cada um de nós… a tranquilidade do desassossego do Amor… vivemo-lo no tempo… e na memória… com a importância que atribuímos a cada detalhe… Despreocupados com o tempo… reencontramos os passos… seguimos os nossos caminhos… que se encontram… que se desencontram… mantendo o desejo que se cruzem novamente…

11 maio 2006

Ciclo...


Sentado sob as pedras da montanha… num espaço em que estou só… dou vida aos sonhos… repouso a realidade… elimino os medos… observo e sinto… os elementos da natureza… as cores… os aromas… os movimentos… os significados… as historias que têm escondidos… ou que apenas… não vejo… e penso não existirem… como eu… que existo… mas que nada revelo de mim… entre as inúmeras historias… que conto… nos meus contos… nos nossos diálogos… com precaução… sem nunca revelar… os meus segredos… sem nunca revelar… a minha historia… deixará de o ser… quando o fizer… Descubro o verde dos campos… o porquê do céu azul… o amarelo das mimosas… que balançam com a brisa quente que o verão nos faz sentir… e ate o aspecto alaranjado do sol… quando inicia o ciclo do seu fim… diante da montanha onde estou sentado… Aproprio-me da força dos elementos… da capacidade da natureza… prevenida para o inicio… mas também… para um fim… ao contrario de mim… de quase todos nós… crentes… ou não crentes… mas desejosos… da posse de uma vida eterna… com fama… e com a gloria… de quem é resistente e é capaz… de sobreviver à luta nos combates… contra a força dos elementos… da natureza…

08 maio 2006

Lágrima furtiva

A certeza de que me sentes ainda hoje faz com que escreva sobre a força dos teus actos. A tua alma dita, diariamente, a maior mensagem de humildade e de trabalho que sempre me transmitiste no teu exemplo de vida. A renúncia ao luxo e ao supérfluo pelo meu crescimento como ser humano fez com que seja reservado e perseverante. A minha educação fez-se com muitos gestos e poucas palavras. Um olhar de desaprovação valeu por mil açoites… foi assim que me abanaste e me fizeste acreditar no que sou… um filho saudoso, mas educado para acreditar que viver é também recomeçar… todos os dias, com fé, e acreditar que amanhã serei melhor como Homem. Para ti Mãe, flores e uma lágrima furtiva…

01 maio 2006

Beijar de Fé

Caminho pé ante pé,
creio na tua vida de amor,
porque sou um homem de fé,
que iluminas com o teu esplendor.

Na tua bondade,
aliada à tua pura inocência,
existe uma profunda vontade,
revelada na tua vivência.

No teu beijar,
reside uma mensagem de fé,
um legado para amar
e caminhar ao teu lado sempre de pé.